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Tiago Silva: “Perceber que não se podia sair de casa mandou os atletas muito abaixo, mentalmente”

Tiago é treinador de competição no Judo Clube de Portugal, o mais antigo da modalidade no nosso país. É professor no Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna há mais de 13 anos e dá também aulas no Externato da Luz. É ainda professor na Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa. “Trabalho é coisa que não me falta!”, brincou. Com as medidas de combate ao surto de COVID-19, os treinos presenciais cessaram e as soluções que o treinador encontrou ‘online’ não substituem inteiramente a rotina anterior à pandemia.

De que modo considera que a pandemia tenha afetado a rotina dos atletas?

No universo do judo, na maior parte dos clubes, há vários judocas. Alguns são atletas, outros são competidores a nível nacional, outros são bons competidores a nível nacional e são medalhados e depois, dentro desses, temos os que chegaram ao alto rendimento. Os bons atletas em Portugal, felizmente, estão espalhados pelo país. Nós temos a sorte de ter dois dos melhores judocas da atualidade – Damian Troianschi e Mafalda Ezequiel.

Desde que acabou o estado de emergência, as indicações que tivemos foi para o clube se manter fechado, com exceção a estes atletas. Eles têm autorização do estado português para treinar, não só têm uma autorização como têm a obrigação. Com distância de segurança e máscara, devido à pandemia, tenho dado treinos a esses dois atletas.

Temos um grupo de entre 12 e 15 atletas que, com esta paragem, a primeira orientação que receberam da nossa parte foi para tentarem manter uma atividade semanal. Com treinos físicos de cerca de uma hora e meia, mas, obviamente, dar treinos ‘online’ e tentar garantir ao máximo que não há grandes perdas a nível de qualidades físicas, é muito complexo.


É muito complexo preservar e garantir a higienização do espaço e dos atletas

O judo é um desporto que envolve contacto físico e proximidade com o adversário. No caso destes dois atletas, os treinos têm sido com esse contacto físico?

Do ponto de vista das especificidades da modalidade, nós seremos das últimas a voltar a uma metodologia tradicional de treino. O judo é um desporto de combate, de grande contacto físico, quer em pé, quer no chão. Inevitavelmente, há troca de respiração e de suor, o judogi –o fato de judo – está normalmente assente num corpo despedido, as mãos estão suadas e o cabelo também. É muito complexo preservar e garantir a higienização do espaço e dos atletas, se eles tiverem contacto, mesmo que sejam poucos na sala.

Estivemos à espera de uma normativa da Federação Portuguesa de Judo, que já saiu e propôs um regresso à atividade espaçado em várias frases: na fase um, só podem treinar os atletas de alto rendimento. Nesta fase, os dois atletas que referi, já poderiam ter um contacto mais próximo e um trabalho mais específico, mas nós tivemos uma atitude mais conservadora. Tenho as janelas todas abertas e falámos com alguns médicos que, pela questão da saturação do oxigénio, não aconselharam que se treinasse com máscara num espaço fechado. Como o espaço é muito amplo, ponho o Damian a treinar de um lado da sala e a Mafalda do outro. Eu, como não estou a treinar, uso viseira e máscara.

Nós fazemos muito treino com elásticos, treino funcional e de musculação tradicional. Felizmente, temos um clube com muito material de musculação. Portanto, tentamos ao máximo respeitar as especificidades da modalidade e, para já, integrar os treinos desta forma. Mais do que isso, acho que seria demasiado ousado e arriscado. Não queremos, nesta fase, dar um passo maior que a perna, como é lógico.


Se não houver uma vacina no mercado em tempo útil, dificilmente as provas vão avançar

É difícil prever o que vai acontecer nos próximos tempos, mas tem uma ideia de quando será possível voltar a praticar a modalidade de uma forma mais tranquila?

É importante fazer uma homenagem à Federação Portuguesa de Judo porque a Federação Internacional, num protocolo de retoma que saiu há uns dias, onde é explicado como é que os atletas devem retomar a atividade física do judo, fez uma menção à Federação Portuguesa de Judo. Pegaram no documento da Federação Portuguesa e inspiraram-se em algumas indicações que demos, como o espaçar das várias etapas para manter a segurança ao restabelecer a atividade. Todas as federações do mundo e a própria União Europeia de Judo estão dentro de como se deve fazer esta retoma.

As provas foram todas canceladas até julho. Em agosto e setembro, à partida, também não se vai realizar nenhuma prova, quer nacional, quer internacional. Os Campeonatos da Europa de Juniores e de sub-23 e o próprio Campeonato da Europa de Seniores estão marcados para o último trimestre deste ano.

Falei com um dos treinadores de seleção e aquilo que todos achamos é que, se não houver uma vacina no mercado em tempo útil, dificilmente, mesmo as provas que já foram remarcadas, vão avançar nas datas marcadas. À partida, o mês de voltar ao calendário internacional é novembro, para alguns escalões. Temos de ser otimistas, mas também temos de ser realistas. Este regresso vai passar por duas questões, do ponto de vista do que é o funcionamento das federações: ou existe uma vacina no mercado em tempo útil ou, de hoje para amanhã, há uma terapêutica que se revela muito eficaz em quem já foi infetado e garante que ninguém morre. Talvez aí haja condições para, em novembro, se retomar o calendário. Se não houver nenhuma destas situações, vou ser sincero, acho muito difícil arriscar a retoma.

Perceber que não se podia sair de casa mandou os atletas muito abaixo, mentalmente

Novembro será então o melhor cenário possível. Mesmo assim, passam vários meses até lá, meses em que os treinos funcionam de forma diferente da habitual. Que consequências é que isso poderá ter nos próprios atletas?

No judo, felizmente, temos atletas que são muito bons alunos, academicamente. Temos alunos do [Instituto Superior] Técnico, de Medicina, da FMH [Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa], de Economia, de Gestão. Temos, por tradição, atletas universitários no judo português. Enquanto que a atividade universitária se conseguiu retomar, de uma forma diferente, mas conseguiu-se retomar, o efeito que teve esta demora e este perceber que não se ia sair de casa, acho que, mentalmente, mandou os atletas muito abaixo.

Em relação aos dois atletas de que falava há pouco, quando o Estado português, e bem, tomou a atitude de colocar as pessoas todas em quarentena e de rapidamente passarmos para o estado de emergência, os atletas estavam justamente a começar. Tínhamos acabado, no final de fevereiro, os Campeonatos Nacionais de Juniores e íamos começar as provas do circuito europeu que classificam para o Mundial. Foi quase como dar uma chucha a um bebé e, de repente, tirá-la. Estávamos numa fase avançada de uma preparação muito considerável.

Evidentemente que no calendário, o tipo de planeamento que vamos fazer vai ficar todo ele condicionado. No período preparatório, temos uma etapa geral e depois entramos no chamado período competitivo. Agora, teremos de, não digo retomar do zero, mas retomar de uma posição muito diferente. No que toca a qualidades físicas, eles perderam, sem dúvida alguma, em termos de força, velocidade e aquilo que são respostas metabólicas muito importantes para o processo de treino e para a resolução das tarefas diárias do treino de judo.

Isto faz-nos pensar que, se calhar, vai valer a pena voltar atrás e trabalhar um pouco mais a componente oxidativa. Nesta fase, não queremos procurar respostas rápidas nem automatismos porque eles nem sequer têm contacto com os parceiros. Temos tempo para trabalhar a consolidação dos gestos outra vez e a parte do volume, que é muito importante. Ao mesmo tempo, já não temos uma janela temporal assim tão favorável até novembro. De hoje para amanhã, estamos no último trimestre do ano e as coisas têm de ser muito bem pensadas para, no final, eles estarem no quadro competitivo outra vez.

Há alguma coisa que lhe pareça importante salientar ou acrescentar à nossa conversa?

Em relação ao planeamento, quando falamos de atletas já crescidos, com 19/20 anos, ou até mais velhos, normalmente já é feito em sintonia com o atleta. Ele já está consciente daquilo que tem de trabalhar e é orientado, obviamente, pelo treinador. Eu diria que, numa fase pandémica mais que nunca, esse exercício de consciência, autonomia, sentido de responsabilidade e vontade de vencer uma dificuldade, se há alguém em quem pode fazer diferença, é justamente nos atletas de alto rendimento. São estes que sempre se habituaram à superação, à resiliência, a não desistir, a querer mais. É preciso ver sempre o copo meio cheio.

Fotografias cedidas por Tiago Silva

Isabel Pinto
Redatora do jornal Pari Passu e estudante da Licenciatura em Jornalismo e Comunicação, na Universidade de Coimbra.